ANTES DA PARTIDA
NOITE 3 JANEIRO 1969 - ÉVORA
Não sei como passei o dia 3 de Janeiro de 1969, mas a noite de 3 para 4 nunca mais a vou esquecer, pois foi de tal modo intensa que merece ser contada. A tropa até aquele noite foi o passar do tempo, com a recruta, com a especialidade, visitas de fim de semana à família e o estar na sociedade quase como na vida civil, ou seja viver com medo ou sem ele no regime de ditadura que nos obrigava a ir para a guerra.
A ultima noite passada na Metrópole antes de embarcar para Moçambique no navio NIASSA foi para mim o virar da página, da maneira de estar na vida, pois foi passada completamente em claro ninguém dormiu, pela primeira vez ouvi cantar canções de protesto, do Zeca Afonso e outros cantores da época, que o regime repudiava e a PIDE vigiava, canções cantadas a plenos pulmões sem o medo e sem receios, pois que mal pior do que ir para a guerra nos podia acontecer. Por alguns momentos senti o sabor da euforia e da liberdade, mas rapidamente isso acabou e deu lugar outro medo, o da guerra desconhecida, que íamos enfrentar e que a partir do embarque não sabíamos se tinha retorno, como infelizmente não teve para muitos camaradas nossos.
A PARTIDA
Foto tirada do Niassa com as nossas famílias ao fundo no dia 4 Janeiro 1969
Foi este o momento em que o Niassa largava do porto de Lisboa com destino a Moçambique, não sei que horas eram, mas penso que foi durante a manhã.
(26.10.2009) O Carlos Alberto Correia da Silva - Furriel Vague-Meste - da C.Caç. 2471
(cac.silva@netcabo.pt) esclareceu, o Niassa levantou ferro de Alcantara às 12 horas de 04/Janeiro/1969. Obrigado.
A VIAGEM
Da viagem para Moçambique não tenho muitas histórias, alem do magnifico convívio entre todos. Tentámos aproveitar o melhor da viagem de barco, que julgo na altura, a primeira para todos, só ultrapassada pela segunda que foi o nosso regresso á Metropole.
A pedido de várias familias aqui vai o nome dos craques: o Lemos, o Mesquita, o Rebelo (petardinho), o Benildo, o Ramos e o Pedro
Só uma lembrança menos agradável para alguns, na passagem pela Cidade do Cabo (Cabo da Boa-Esperança), o mar estava um pouco alterado e o Niassa balouçava um pouco ou muito, só me lembro que numa das refeições fiquei só à mesa, todos os outros companheiros desertaram enjoados. No regresso, no mesmo local em 1971, foi o caos, o mar estava aí bastante mais alterado e poucos escaparam ao enjoo durante dois ou tres dias.
Depois da partida de Lisboa, andámos cerca de duas semanas só a ver mar, nada mais, a não ser os peixes-voadores que acompanhavam o Niassa e que nos presenteavam com os seus voos, nunca mais vi tais peixes.
Fizemos escala em Luanda-Angola (data?) onde nos deixaram esticar as pernas,durante umas horas, depois de tantos dias de barco e que deu para conhecer um pouco da capital angolana.
CHEGADA A MOÇAMBIQUE
Chegámos a Lourenço Marques (hoje Maputo) no dia 25 de Janeiro de 1969 (fotos ?) onde os batalhões e companhias que seguiam no Niassa fizeram um desfile para a população da cidade. Ai ficámos cerca de dois dias, antes de seguir viagem até à Beira, nosso destino maritimo final.
A 27 ou 28 de Janeiro chegámos ao porto da Beira, penso que aí já sabiamos que o nosso destino era a provincia de Tete. Antes do desembarque foi distribuida a todos os militares a bordo a farramenta de trabalho que nos iria acompanhar durante dois anos a velhinha G3 e respectivas munições. Logo aí ao desembarcar de G3 na mão, para nos defender-nos, ficou a sensação que a guerra começava ali na Beira, quando ainda estava a 1.000 km de distancia do destino que nos haviam reservado. Tal era o conhecimento que tinhamos da guerra. Ao chegar ali éramos os "checas" mais recentes em Moçambique. Tudo tem um principio.
Depois seguiu-se a azáfama de desembarcar o batalhão, após quase um mês de viagem. Fomos levados para a estação do caminho de ferro da Beira, por sinal bastante moderna, ampla e bonita, onde aos poucos nos fomos acomodando no comboio que nos esperava para levar ao destino.
Estação CFM da Beira em 1968
Depois de todos arrumados no comboio, sem ficar ninguém para trás, lá partimos para Moatize ao final do dia 29 de Janeiro, cerca das 20 horas, já noite cerrada.
O comboio era movido por maquinas a carvão, o que nos dificultava um pouco a viagem, pois alem do calor a que ainda não estavamos habituados, a fuligem vinda das chaminés agarrava-se-nos ao corpo suado. O comboio avançou Moçambique dentro por entre a escuridão, sem nada se poder ver, cada um acomodou-se o melhor que lhe foi possível, para tentar dormir. Depois de varias horas de viagem a dormitar, o comboio parou numa estação, não faço a minima ideia qual, eram cerca das 4 horas da manhã, já o sol ia alto e abrasador, levantei a cortina da janela e a primeira imagem que tenho do Moçambique profundo foi um preto na plataforma da estação vestido com uma gabardine que lhe cobria o corpo todo só deixando ver a cabeça. Cena inesquecivel.
A viagem continuou durante o dia todo. Passámos por uma ponte de ferro com varios quilometros, sobre o Zambeze, até chegar a Moatize, penso que ao fim de 36 horas de viagem(?). Moatize era, e penso que ainda é, uma zona de minério de carvão, via-se por todo o lado montanhas de carvão à espera de ser embarcado para a Beira. Na altura penso que não havia estação. Descobri na internet a foto que vai a seguir. A viagem até à margem do rio Zambéze eram cerca de 20 km.
Estação CFM de Moatize actual
Capela num embondeiro em Moatize (foto do Viana)
Chegados a Moatize cansados de tantas horas de comboio, suados, sem banho e com fuligem da chaminé do comboio agarrada ao corpo, não tivemos direito a descanso a parte mais dura da viagem até ao destino ainda estava para vir. Esperava-nos uma coluna de viaturas que deveria transportar o batalhão para os varios destinos que lhe tinham sido reservados.
Descarregado o combóio e carregadas as viaturas com todo o tipo de material do batalhão fomos levados cerca de 20 km até à margem sul do Rio Zambeze, em frente à cidade de Tete, na altura ainda não existia a Ponte sobre o Zambeze, que está na foto seguinte. Todo o batalhão foi transportado para a outra margem, em barcaças, uma especie de barco que não passava de uma plataforma plana onde cabiam meia duzia de viaturas e uma centena de homens. A travessia era bastante prigosa pois o Rio Zambeze naquela zona tinha uma corrente fortissima, e qualquer homem que caísse ao rio nunca mais era encontrado, não só por causa da corrente mas também devido à presença dos alfaiates (crocodilos) que estavam sempre à espera de um descuido para sua refeição.
A barcaça para fazer a travessia e chegar à outra margem ao local de desembarque tinha que avançar junto à margrm de saida, onde a corrente era menor, e só depois de percorrer 1 ou 2 km, contra a corrente, se metia na corrente forte e com a força dos motores chegava à margem norte.
Ponte sobre o Zambeze em Tete
(A ponte de Tete sobre o Zambeze começou a ser construida em 1970)
Chegados à margem norte ou seja a Tete, a coluna avonçou em direcção ao Fingoé, mas antes de lá chegar ainda fez escala na Chicoa, onde chegou já de noite e tivémos que pernoitar. Chicoa era outro local onde tinhamos de atravessar de novo o Rio Zambeze antes da etapa final até ao Fingoé.
Chicoa era um local sem casas nem luz onde viviam algumas pessoas encarregadas da barcaça para a travessia do rio. Foi a bem dizer a nossa primeira noite no mato com ração de combate para o jantar. Á hora de descansar um pouco os olhos, fazia um calor abrasador, cada um arranjou um canto para dormir. No meu caso foi debaixo de uma Berliet no chão enrolado num impermiavel de camuflado, só que a meio da noite acordei com um rio de agua a correr por baixo de mim. Estavamos na época das chuvas e quando chuvia era a sério. Passei o resto da noite sentado a pensar naquilo tudo que me estava a acontecer e no que estava para vir.
Logo que dia despontou, começámos a travessia, mais estreita que em Tete, mas de igual modo perigosa.
Enfim os "checas" chegaram ao Fingoé no dia 1 de Fevereiro de 1969, quase um mês depois de sairem de Lisboa. O batalhão que fomos render (penso que era o Bat.Caç. 1906?) fez-nos a recepção da praxe, com a alegria de que iam ser rendidos, e de que a guerra para eles estava a chegar ao fim. Começava então a missão do Batalhão de Caçadores 2863 e das suas companhias, CCS no Fingoé, C.Caç. 2470 no Fingoé e depois Gago Coutinho, C.Caç. 2471 no Muze e a C.Caç. 2472 no Zambué.
Outros locais onde havia companhias ou pelotões sob comando do batalhão, que me lembre, eram Vasco da Gama, Gago Coutinho, Cantina do Oliveira e outros, o Google não mostra.
O teatro de operações do Batalhão Caçadores 2863, no Google.
A norte da linha amarela é a Zambia
A Barragem de Cahora Bassa, começou a ser construida em Setembro de 1969, depois do batalhão já estar instalado, penso que a zona de acção do batalhão servia de tampão de defesa a norte, para que a construção não tivesse problemas. A Frelimo intensificou a guerra nesta area, quando chegámos, mas nunca fez nada para impedir a construção da barragem, porque Samora Machel reconhecia que a mesma era para o interesse de Moçambique.
Já agora o nome Cahora Bassa, vem do dialecto local, que queria dizer "agora passa",a população quando queria atravessar o Rio Zambéze a pé era nesta local que o fazia, por ser uma garganta estreita de facil passagem do rio. Foi por isso que o local foi escolhido para a construção da barragem, na época a maior de toda a Africa.
Outra versão num Link do Google diz que "Kahoura Bassa" significa "acaba o trabalho".
Seja como for a barragem chama-se "Cahora Bassa" e foi uma grande obra da engenharia portuguesa, construir uma barragem no meio da selva, é obra.
memórias de
Benildo Lopes